Nuances, fatos e lentes


Em uma alegre civilização, no dia em que os fatos se tornaram impositivos as lentes se fizeram necessárias. A necessidade das lentes surgiu para acomodar confortavelmente a verdade dos fatos. Na sociedade contente, os fatos eram sempre considerados relativos, jamais definitivos. Na alegria vigente e na euforia quase constante, as lentes transparentes não foram úteis, e por isso mesmo foram descartadas. No ambiente desta gente que acreditava, em tudo aquilo que fosse oportuno, ainda que não muito convincente, as lentes para atender prontamente a demanda foram disponibilizadas em nuances apropriadas e meticulosamente articuladas.
As lentes inocentes foram amplamente difundidas e fervorosamente defendidas, eram úteis demais. As lentes potentes foram convenientemente mantidas em espaço seguro e restrito, utilizadas exclusivamente por gente diferente, diga-se imponente. Já as lentes ausentes, as salientes, as diminutivas e outras menos favoráveis à alegria vigente foram sendo discretamente esquecidas, inutilizadas, mas não proibidas. As nuances que tiveram destaque obviamente foram popularmente engrandecidas e agraciadas, embora a maioria da população contente não fosse capaz de entender, apenas nelas crer.
Os fatos foram aos poucos se adequando às nuances das lentes, ou foi o inverso? A comodidade do ambiente era pacificamente celebrada, haja vista ter sido há muito almejada. As lentes e os fatos nunca mais se separaram. Nuances, fatos e lentes estiveram sempre dispostos a novos arranjos, a cada propício momento onde houvesse um indício capaz de obstruir a credibilidade que imperava entre as pessoas e os fatos. A narrativa foi considerada um sucesso, um verdadeiro e honesto regresso ao tempo de poder ser apenas gente, inocente e coerente.
Onde há lente há gente contente! Afinal, o que seriam dos fatos se toda essa gente alegre e dispersa fosse capaz de interpretá-los sem os filtros comumente disponibilizados. O que teria sido das nuances, dos fatos e das lentes, sem a astuta habilidade das mentes diferentes? Nuances inexistentes? Mentes prepotentes? Mentes coerentes? Mentes que nunca mentem!? Mentes que pressentem? Nuances dessas mentes?
by Ale Madia

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