Conto numérico
Um conto sobre
o encontro de duas personagens peculiares é sempre divertido. A conversa pode
ser controversa, contudo elucidativa. Um diálogo revelador de realidades
distintas. Num bate-papo informal cada qual é aquilo que é, sem filtro e sem
noção; falta também disposição para a mútua compreensão. Assim foi com as falas
entre “valor aproximado” e “cálculo exato”. Apenas dois sujeitos proclamando
com entusiasmo suas convicções numéricas, entre outras. Na matemática da vida
eles estavam em lados opostos, porém conviviam em plena harmonia.
O “valor
aproximado” fazia parte da maioria. Tinha um entendimento raso, baseado nas
pequenas conquistas e na luta diária necessária à sobrevivência financeira. Um
pensamento de curto prazo, limitado pela educação que recebera e pela dura
realidade que conhecera, desde sempre. Apesar da visão simplista de mundo, era
extremamente feliz e se considerava um sortudo. O futuro era algo tão distante,
com o qual nunca precisava se preocupar, de acordo com suas crenças. O futuro,
de tão longínquo, não constava em seu horizonte. O presente era tudo o que
tinha, e já era o bastante. Tanto sua vida quanto sua visão de mundo eram
contrastantes com a de seu conhecido.
Esse conhecido
era o famoso “cálculo exato”, um sujeito muito disciplinado e com visão de
longo prazo. Vivia planejando e averiguando os resultados. Com um passado
financeiramente privilegiado podia facilmente administrar o presente, e assim
focar no seu futuro. Nada numérico passava despercebido. Com uma educação ampla
e de qualidade, era detentor de uma visão vasta e assertiva sobre diversas
questões, notadamente sobre a matemática da vida. Suas necessidades demandavam
mais recursos que as do “valor aproximado”, algo previsível e que não era um
problema. Tinha tudo o que parecia razoável para ser feliz, e também mais
preocupações.
Enquanto o
“valor aproximado” não se importava com escassez, o “cálculo exato”, por sua
vez, vivia amedrontado pelos fantasmas da contabilidade que ele mesmo criava.
Eram dois indivíduos que foram, cada qual, moldados por seus mundos tão
desiguais, e que pouco tinham em comum. Porém conviviam e interagiam,
eventualmente se encontravam para a inevitável conversa onde decidiam as moedas
de troca que iriam figurar nos demonstrativos de resultados; estabelecimento de
arranjos cruciais.
O “valor
aproximado” acreditava que quanto mais trabalhasse, mais poderia almejar, um
dia, se tornar um sujeito parecido com o “cálculo exato”. Era uma certa
idolatria, cega e ingênua, baseada no menosprezo aos valores que ele não
entendia. E o “cálculo exato” não conseguia compreender como era possível viver
com aquela visão; apesar de incentivá-la, para sua própria conveniência e
sobrevivência. Seu discurso era inspirador, contudo apartado da realidade de seus
ouvintes, entre os quais estava o contente “valor aproximado”.
Com bagagem
suficiente para saber que seu discurso não era realista, ao menos para a
maioria, o “cálculo exato” seguia firme propagando seus ideais. Era a maneira
mais eficiente de continuar a controlar as insatisfações de natureza econômica
que surgiam. Neste contexto de convívio pacífico, subestimado ou não, não seria
inteligente, nem conveniente ou prudente, compartilhar conhecimento legítimo
que pudesse empoderar os inúmeros “valores aproximados”. Afinal, “cálculos
exatos” jamais desperdiçam recursos ou oportunidades. Na elite em que vivia o
“cálculo exato” tudo era meticulosamente arquitetado para manter a ordem
estabelecida e tida como natural. A única mudança almejada pela minoria privilegiada
era a multiplicação de valores, os financeiros próprios, e os alheios sempre
que com eles pudessem lucrar também, ainda que os ganhos gerais fossem medianos
e medíocres na média aritmética.
Os acordos
tácitos desses famigerados encontros ecoavam por muito tempo entre as visões de
ambos os lados, e produziam efeitos reais. Era um balanço contábil
aparentemente sustentável, onde o "valor aproximado" estava disposto
a aceitar dificuldades e o “cálculo exato” a administrá-las. Num cenário onde
os interesses econômicos ditam as regras, tudo o mais constante, a manutenção
das desigualdades estava assegurada e equilibrada, ainda que gerasse um certo
desconforto.
Os
questionamentos, limitados pela informação e pela educação ambas deficientes,
dos “valores aproximados”, eram prontamente respondidos com previsões otimistas
e suposições. Um oportuno cálculo; exato? Os “valores”, “aproximados” por sua
natureza, inabilitados para tamanha e convincente exatidão, acreditavam que
tudo era um presente. E os eloquentes sempre de plantão, calculavam exatamente
os riscos presentes enquanto investiam pesadamente em seus futuros
egocêntricos. Muitos trabalhavam e se empenhavam por números, enquanto outros
detinham o desempenho da matemática a seu serviço. Afinal, o grande “x” da
questão era a satisfação! É o velho conto onde os números ditam o padrão! É
também o conto onde desprezam a lição!
by Ale Madia
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